segunda-feira, 9 de novembro de 2009

coisas velhas e restos de cinza

Bonn, 13 de dezembro de 1989

(carta escrita em máquina de escrever e não endereçada, durante estadia em Bonn, Alemanha, às vésperas de voltar para o Brasil, semanas depois da queda do Muro de Berlim. Encontrei agora e reproduzo)

Reproduziram duas formas de ser. Uma, hemorrágica, secou. Secou de prazer e de entendimento. Secou, deixado ao léu. Secou de repente. A outra, que é menos tentadora, que sobra ao lodo todo, que sobrevive ao menor contato, esta ainda pode ser encontrada a preço de mercado no varejo. É lógica de mercado. Vende mais quem tem o melhor produto. Quem é bom que se estabilize.

Estou pronto a optar pelo melhor enforcamento. O da gola da gravata, ou da medalhinha do primeiro lugar. As formas de ser, não sei. É saber e morrer. As regras estão nitidamente sob o foco da luz e eu mesmo iluminei. E a competição já tirou muito meu sangue. O sangue da hemorragia que escorria vermelho e vivo, muito bonito. Optaram sim, os outros optaram por uma versão mais opaca, quase cinza. Sem vida vermelha. A hemorragia secou. Ainda não encontrei outra no mercado.

Lembro da mãe que dizia fazer planos para seu filho. São pessoas fazendo planos para outras pessoas. Ditando regras e, pior, chantageando. Morri de gordo e velho. Sufocado e cansado. Mas a consciência no ombro me disse que plantei o que colhi. “Vai-pra-porra!”, disse, sem titubear, à minha consciência. Quem é o mais esperto destas nossas consciências: ela ou eu?

Batuque e cafezal: é Natal. Fico pensando naquela sociedade alternativa que se formou em São Paulo. Que freqüenta a sociedade alternativa que se formou em São Paulo e que fica feliz com a sociedade alternativa que se formou em São Paulo.

Eita, São Paulo. Você tem tanto a dar para esse povinho bunda que te pariu. Faça um presidente. Nomeia um cargo. Não fica aí, morando na casa de teus pais porque eles não deixam você sair. Afinal, você já tem mais de quatrocentos anos. Bem crescidinho e senhor de sua situação. Eu sei que você não gosta daquela árvore de Natal que o Mappin, todo ano, coloca. Eu sei que você não gosta do que cospem em teu rio. Eu sei que não gosta da fumaça que respiram em teu ar. Você quer se casar? Rio de Janeiro é uma puta sem vergonha; Minas, muito conservadora. Vai para o Nordeste, terá a mulher que quiser na cama que escolher. A Argentina é até bem sensual, canta um tango – até posso marcar um encontro, falar coisas bonitas sobre você. “Vai-pra-porra!”

Respira fundo. Segura esse ar nos pulmões, acende um cigarro. Aqueles alternativos, aqueles que te fazem ser melhor. Respira. Guarda fundo este ar e não bate na máquina de escrever tão depressa. Levanta essa bola. Bebe essa cerveja, amarra um fogo. Não esquece que essa pode ser sua última oportunidade de ser feliz. Bebe mais esse trago . Corta o cabelo, assusta as pessoas e a si mesmo. Depois escreve tudo isso numa carta e se finge de moderninho. Eles não vão saber que você bebeu engov brasileiro antes e nem passou mal no outro dia.

Esperto, não? Você é espertinho, leva jeito pra coisa. Tem até certo talento. Ordena bem as palavras. Que raciocínio, que bonito. Aliás, não se preocupa com a beleza. É só pentear o cabelo bem para trás e fazer um charme com o chapéu. Não se preocupa com as pessoas. Seus pensamentos já trazem suficientes preocupações. Te intoxica. Te mata. “Vai-pra-porra!”

“Vai-pra-porra!”. Esquece as regras que te ditaram. Lembra daquele professor de gramática. Sabia de tudo. Babaca! Não corra pela raia de fora. Não corra! Que competições mais sem sentido. Fica aí arranjando fórmulas pra ser feliz engravidando outras barrigas. Aberta, meu filho. Mata essas crianças. Joga esse veneno pela boca. Envenena. Não fica sendo levinho com seu oponente. Gentil, pra que? Manda pra porra!

Chinelada. É isso, mata com chinelada a barata. É só uma barata. Inseto insignificante. Nojento. Mata, mata – com chinelo. Inseto nojento. Morre – toma, toma – morre. Não morreu? Toma mais uma – isso! E agora, morreu? Não adianta ficar aí mexendo as perninhas não. Não tenho dó. Você é bem menor do que eu. Não adianta ficar gritando pelos seus amigos. Meu chinelo é forte e ainda tenho o outro pé. Babaca!

Chega de ser poeta. Verbaliza essa hemorragia. Deixa sangrar a ferida. Sem ataduras, por favor. Deixa o céu aberto. Vomita. Sangue. Descreva sem medo de mais ferimentos. Bebe, bebe mais – você estava precisando mesmo de um porre. Não preveja futuro nenhum. Esquece. Esquece o futuro. Sonha que já se foi. Manda para o espaço. Eita céu bonito que se abre. Fonte dos prazeres. Lembra o que eu te disse. Lembra que é assim mesmo.

E você, barata, ainda não morreu? Cadê você? Filha da puta de barata. Vem cá, olha o titio, olha este presente que tenho pra você. Toma, toma... barata babaca! Agora vai para o lixo que é o lugar de barata nojenta. Vai dormir aí com essas coisas velhas e restos de cinza. Está mortinha. Tchau. Tchauzinho. Barata babaca. “Vai-pra-porra, Kafka!”

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